
quando nossa alma não consegue
enxergar além da escuridão
Salto de precipícios para encontrar palavras. Às vezes as capto no ar, no céu claro ou em lugares escuros. Também as vejo na lua e lá um anjo me diz: "Tome são tuas".
Duas folhas caem ao mesmo tempo do mesmo galho. Uma ainda verde, cheia de vida, desce rápida e para estática no chão frio do fim da madrugada. A outra folha, já seca e à beira da morte, desce suave e vagarosamente, pousando como pluma no mesmo chão gélido.
São cinco horas da manhã e na ruazinha silenciosa as duas folhas adormecem, embaladas pela canção dos primeiros pássaros que despertam.
O vento de outono passa. Outras folhas caem, tanto verdes, quanto secas, mas nenhuma fica em par, como as que caíram primeiro.
Às seis horas da manhã, uma dona-de-casa , trazendo uma mangueira enrolada à mão, aparece à calçada, despertando as folhinhas com um jato feroz de água. Tenta raivosamente se livrar das duas, e enquanto pratica a ação, pensa na vida e em toda sujeira que tem que limpar todos os dias, num frenético e incansável ritual . As folhas passam, para a calçada do vizinho, “missão cumprida”, pensa a mulher.
O vizinho atrasado como sempre, tira o carro. Insensível a qualquer coisa que não seja o trabalho, passa por cima das folhinhas, que se agarram desesperadamente ao pneu. Que aventura para elas que nunca viram além da sua própria árvore. Agora observam a fumaça, o céu cinzento, as pernas apressadas, as buzinas enlouquecidas, os motoqueiros, as rodas, rodas, rodas ... e .... desavisadas caem do pneu, tontas ainda, ficando ali esquecidas.
À tarde, , as duas permanecem ainda no mesmo lugar, e ainda lado a lado. O vento de outono passa novamente, a folha verde se mantém no mesmo lugar, a folha seca voa calmamente, dançando pelo ar, leve, muito leve. Um fotógrafo eterniza esse momento, e ilustra seu mais novo livro com a imagem da folha seca no ar.
Ao amanhecer a folha verde é recolhida por uma mulher que a coloca no meio de seu livro de poemas. Ficará ali, convivendo com as palavras, até secar.
A folha verde e a folha seca, a dona-de-casa e seu vizinho, o fotógrafo e a mulher. Qual o sentido de vida para eles? Todos possuem o mesmo ciclo de vida. Ciclos são repetitivos e encerram a mesma antítese de nascer e morrer, mas o sentido que se dá à vida de cada um é único para cada ser. Assim como não há fisicamente um ser igual ao outro, não há um sentido de vida igual ao outro e é isso que faz toda diferença na existência de cada um de nós.
Outro dia fiquei sentada por três horas aguardando uma consulta médica. Não havia muito o que se fazer ali, naquele consultório comum. Na mesinha ao lado, revistas velhas com letreiros desbotados e notícias encardidas. Pessoas também comuns, murmurinhos doentes. Pacientes impacientes. Nada para ler, nada para se falar.
Três horas quase perdidas, salvas por uma fração mágica de segundos. Meus olhos sonolentos conseguiram captar uma imagem: uma janela. Que imagem mais comum, diriam alguns, mas como tudo é uma questão de relatividade, a janela passou a ter para mim, um valor altamente significativo. A arquitetura era bem antiga, talvez início do séc.XX. Permaneci ali, centrada naquela visão. Estranho, mas parecia ser a primeira vez que via uma janela.
Como pensar no exato valor que há em uma janela? Que significado importante poderia ter uma janela na confusão doentia do dia-a-dia correndo lá fora?
Se para Carlos Drummond “tinha uma pedra no meio do caminho”, para mim tinha uma janela no meio do caminho.
Como ignorar uma janela? Onde há uma janela há uma poesia grávida pronta para nascer.
Quantas coisas sentimos através de uma janela... Por ela vimos a vida renascer todos os dias quando deixamos o sol entrar. Por ela damos adeus a um amor. Por ela tememos a escuridão e esperamos a mansidão da luz. Existem sonhos através das janelas. Nossa mente cansada vagueia a vida que sonhamos ter. Existem também lágrimas que se colam à janela, sempre quando chega o entardecer e percebe-se que nada vem pronto na vida.
Como poesia e vida circulam na mesma veia, proponho um exercício bem fácil: sentemos à frente de uma janela e observemos a vida que corre através dela. Não importa a arquitetura da janela, ou se é feia ou bonita, velha ou nova, o importante é que esteja aberta, e que haja um pano de fundo: uma rua ... uma flor ...... um rio, ou quem sabe o trio de tudo isso. Assim, dessa forma tão simples, nascerá em algum coração um rebento de poesia.