terça-feira, 17 de agosto de 2010

Agenda


Era mais uma agenda velha no lixo reciclável, mas a capa com uma foto antiga a diferenciava do resto do material ali depositado. Uma mão aproximou-se rapidamente do caminhão que já partia, e agarrou a agenda como quem abraça um filho. Subiu as escadas do edifício lentamente. Entrou no apartamento nº 1968, coincidentemente o mesmo ano da agenda. "Quarenta anos", pensou a mulher. Os dedos finos começaram a folhear as páginas. No dia primeiro de janeiro de 1968, planos para o novo ano: cuidar da saúde, viajar, cultivar as flores, rever os amigos, ficar com seu amor. Em fevereiro, ver o mar, bailar com a lua, dançar na rua. E assim, mês a mês ela revivia. Ficou ali tímida em seus pensamentos, esquecida nas folhas. O que é afinal uma agenda velha se não a comunhão de sonhos, o desassossego da rotina, o despertar de planos, a confissão de segredos?
A mulher mirou-se no espelho, estava agora com oitenta anos e sozinha naquele apartamento. Olhou a agenda no auge dos seus quarenta anos, pouco envelhecera, apenas mudara do branco para o amarelo, mas estava ali, intacta. A mulher ao contrário da agenda embranquecera cabelos, pele, pensamentos ... A agenda continuava sendo portadora dos mesmos sonhos de quarenta anos atrás; a mulher já não tinha sonhos. A agenda estava pesada, a mulher estava leve.
Olhou para a ausência no sofá, para as paredes vazias de fotos, para o silêncio negro da sala. Dos quarenta anos, restavam agenda e mulher, material e alma, lembranças e saudade.
No dia seguinte, a mulher desceu as escadas ainda mais lentamente. Acariciou a agenda e a depositou novamente no lixo reciclável. Dessa vez não subiu as escadas como sempre fazia. Abriu o portão e foi caminhar suavemente pela rua, enquanto pensava no poema de Cecília Meireles: " O que é preciso é ser como se já não fôssemos, vigiados pelos próprios olhos severos conosco, pois o resto não nos pertence."

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