terça-feira, 31 de agosto de 2010


É tarde ...
enquanto tudo silencia
poemas gritam dentro de mim

Tinha uma janela no meio do caminho


Outro dia fiquei sentada por três horas aguardando uma consulta médica. Não havia muito o que se fazer ali, naquele consultório comum. Na mesinha ao lado, revistas velhas com letreiros desbotados e notícias encardidas. Pessoas também comuns, murmurinhos doentes. Pacientes impacientes. Nada para ler, nada para se falar.

Três horas quase perdidas, salvas por uma fração mágica de segundos. Meus olhos sonolentos conseguiram captar uma imagem: uma janela. Que imagem mais comum, diriam alguns, mas como tudo é uma questão de relatividade, a janela passou a ter para mim, um valor altamente significativo. A arquitetura era bem antiga, talvez início do séc.XX. Permaneci ali, centrada naquela visão. Estranho, mas parecia ser a primeira vez que via uma janela.

Como pensar no exato valor que há em uma janela? Que significado importante poderia ter uma janela na confusão doentia do dia-a-dia correndo lá fora?

Se para Carlos Drummond “tinha uma pedra no meio do caminho”, para mim tinha uma janela no meio do caminho.

Como ignorar uma janela? Onde há uma janela há uma poesia grávida pronta para nascer.

Quantas coisas sentimos através de uma janela... Por ela vimos a vida renascer todos os dias quando deixamos o sol entrar. Por ela damos adeus a um amor. Por ela tememos a escuridão e esperamos a mansidão da luz. Existem sonhos através das janelas. Nossa mente cansada vagueia a vida que sonhamos ter. Existem também lágrimas que se colam à janela, sempre quando chega o entardecer e percebe-se que nada vem pronto na vida.

Como poesia e vida circulam na mesma veia, proponho um exercício bem fácil: sentemos à frente de uma janela e observemos a vida que corre através dela. Não importa a arquitetura da janela, ou se é feia ou bonita, velha ou nova, o importante é que esteja aberta, e que haja um pano de fundo: uma rua ... uma flor ...... um rio, ou quem sabe o trio de tudo isso. Assim, dessa forma tão simples, nascerá em algum coração um rebento de poesia.

domingo, 29 de agosto de 2010


Sim
sou rota
desavisada

O trabalhador arquivo de ontem e hoje


Foi na adolescência (década de 80), que li pela primeira vez o conto "O arquivo", de Victor Giudice. Lembro-me, ainda, da sensação de estranheza que o texto me causou.
Falava de um trabalhador que ao fim de um ano de serviços prestados obtinha uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. Com o passar do tempo seu salário era cada vez mais reduzido, sua condição de vida piorava. Teve que mudar para locais mais pobres e longe do trabalho, até ficar ao relento. Quase não comia, não dormia e mal se vestia.
Quando completou quarenta anos de serviço, a chefia o convocou. Havia sido premiado: não teria mais salário nem férias.
O trabalhador, cansado, pois havia atingido o tempo total de trabalho,tentou requerer a sua aposentadoria, mas o patrão lhe dissera para aguardar, porque ele já era um desassalariado, teria que pagar uma taxa inicial para permanecer no quadro de funcionários.
Fora toda essa barbárie, o que mais me chocou no texto, na época, foi o fato de ao final de sua vida, o trabalhador se transformar em um arquivo: " As formas se desumanizaram, planas, compactas. Nos lados havia duas arestas. Tornou-se cinzento ... um arquivo."
Naquele tempo, acostumada a ver meu pai, metalúrgico em São Bernardo do Campo, a lutar por seus direitos e gritar por dignidade nas grandes greves do ABC, muitas vezes ao lado de Lula (quem diria) , achava maluquice aquela cena, coisa capaz de acontecer somente na Literatura. Mas, hoje, passados bem mais de vinte anos, vejo como isso é bem possível. Nós trabalhadores honestos e responsáveis como o João do conto, estamos nos transformando lentamente em arquivos, quando a cada dia que nasce, vemos nossos direitos sendo reduzidos: o direito ao descanso, o direito a um aumento justo, o direito ao atendimento médico de qualidade, o direito à Educação e outros tantos direitos soterrados.
Estamos nos transformando em arquivos a cada plenária no congresso, quando criam mais e mais leis para reduzir nossas chances de ter um padrão adequado de vida.
Em pleno século XXI, milhões de arquivos perambulam pelas ruas. O que difere o trabalhador arquivo de agora e o personagem criado por Giudice é que aquele foi transformado em metal, mais resistente; e o de agora, mais moderno, é feito à base de papel reciclável, que é para ser manuseado e reutilizado muitas vezes, assim, quando não prestar mais, apenas um sopro será capaz de eliminá-lo.
E no século XXII, que estranho objeto seremos?

sábado, 28 de agosto de 2010

Silêncios


Escuto alguns silêncios
Que moram dentro
de folhas caídas

Escuto gritos de dor
de árvores queimadas
"Dormem queridas
vai passar"

Escuto o silêncio
das nuvens
que me atravessam

Sinto mortalmente
O beijo que dou
na brisa que por mim passa

Talvez eu seja as folhas
Talvez eu seja as árvores
Talvez eu seja a nuvem
Talvez eu seja todos
os silêncios

O voo da borboleta


Observa o voo da borboleta. Voa rápido, mas subitamente para um segundo numa flor. Delicada, beija-a mansamente. O sol brilha nas asas coloridas. Somos felizes enquanto observamos o voo da borboleta.
Observa agora a flor que foi tocada pela borboleta. Ainda treme devido ao pouso em suas pétalas. Somos felizes enquanto observamos a flor.
Agora observa o resto do jardim. Há muitas borboletas pousando aqui e lá. Não tenha pressa e coloca a sua cadeira na sombra da pitangueira.
Enquanto estamos neste quintal, o mundo se perde lá fora. Alguém morre em segundos, bombas explodem em segundos, árvores caem em segundos, corpos se mutilam em segundos.
A tristeza dura mais que a alegria, o desamor mais que a presença, a dor mais que a cura, o grito mais que a calma.
Mas e a borboleta? Tente se aproximar daquela borboleta mais vistosa. Tente tocá-la. Alguns segundos ainda restam. Linda, leve, perfeita e ... contemple agora as asas da borboleta se distanciando de suas mãos. Não foi possível pegá-la, mas ainda é possível sentir a sensação da liberdade no ar deixada pela borboleta.
Não há, neste instante, mais borboletas no jardim, porém ainda há um quintal com flores. A felicidade assim como a borboleta, também possui cor, leveza, alegria e aparece apenas por alguns segundos para nos distrair da vida estática.
Talvez amanhã, quando o dia chegar ainda haja tempo para observarmos o voo da borboleta, a cadeira vazia ainda continua lá.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A partilha


O carro foi se aproximando da casa da fazenda. Era estranho saber que vovô não estaria mais ali, sentado na cadeira, debaixo da varanda, esperando por mim.
Na minha infância, durante as férias de janeiro, era sagrado que todos os netos passassem uma semana com os avós.
Subi as escadas, passo a passo. Cada degrau uma lembrança. Aquele cheiro bom de mato, de terra pura, de fruta no pomar, de boi no pasto, de fogão à lenha. Quanta saudade!
A sala estava cheia. Vinte netos, dez bisnetos, tios, tias. Fui a última a chegar.
_ Venha querida, agora podemos começar - disse minha mãe.
No chão espalhavam-se todos os pertences de vovô: discos, fotos, livros, roupas, relógios, quadros, radinhos de pilha e uma caixinha velha de madeira.
Que confusão! Mais de cinquenta italianos em uma única sala. Mão para lá, mão para cá, falatório. Esbarrões, uma verdadeira feira.
Quando todos se acalmaram, vi ali, no meio do tapete, a caixinha velha. Ninguém a quisera.
Era bem nítido em minhas lembranças, o valor daquele objeto, ou melhor, não do objeto em si, mas do que dentro dele havia: selos. Muitos selos, de vários tamanhos e cores, de diversos lugares. Os selos representavam histórias. Cada carta recebida e que trazia notícias boas, tinha o selo retirado e guardado. Quando a noite caía, meu avô pegava a caixa e revivia emoções. Sempre chorava. Não era um colecionador de selos, mas da simbologia que carregavam e zelava por eles, como se essa fosse uma forma de eternizar os seus momentos de felicidade.
Essa mania de vovô durou sessenta anos. Nos dois últimos anos de sua vida, acordava e dormia com a caixinha de selos. Vovó só não se separou porque era ridículo demais acreditar que estava sendo traída com uma caixa de bobagens, segundo ela.
Passei grande parte da vida com medo de selos. Tinha verdadeira aversão a eles. Odiava receber cartas com receio de acabar também presa aqueles pedacinhos de papel e suas lembranças.
Depois daquele alvoroço, enquanto todos dormiam, fui à varanda. Como num ritual em que se jogam as cinzas do morto ao mar, lancei ao vento os selos. Pronto! Agora a partilha acabara de vez. Estavam libertas todas as histórias, e que descansassem em paz.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010


E somos tudo
e somos nada
sementes ao vento
transpondo cercas farpadas

E somos tempestades
e somos mar
estrondos no infinito
canções lançadas ao céu

E somos serpentes
e somos águia
somos poço
e somos água

somos tudo
no fundo do nada
Gigantescas assombrações
caminhantes imaginários
lanças e estacas
solavancos na estrada

E somos pó
e somos nada


Uma chuva fina de espanto
caiu sobre minha cama nesta madrugada
mas eu não estava lá

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Agenda


Era mais uma agenda velha no lixo reciclável, mas a capa com uma foto antiga a diferenciava do resto do material ali depositado. Uma mão aproximou-se rapidamente do caminhão que já partia, e agarrou a agenda como quem abraça um filho. Subiu as escadas do edifício lentamente. Entrou no apartamento nº 1968, coincidentemente o mesmo ano da agenda. "Quarenta anos", pensou a mulher. Os dedos finos começaram a folhear as páginas. No dia primeiro de janeiro de 1968, planos para o novo ano: cuidar da saúde, viajar, cultivar as flores, rever os amigos, ficar com seu amor. Em fevereiro, ver o mar, bailar com a lua, dançar na rua. E assim, mês a mês ela revivia. Ficou ali tímida em seus pensamentos, esquecida nas folhas. O que é afinal uma agenda velha se não a comunhão de sonhos, o desassossego da rotina, o despertar de planos, a confissão de segredos?
A mulher mirou-se no espelho, estava agora com oitenta anos e sozinha naquele apartamento. Olhou a agenda no auge dos seus quarenta anos, pouco envelhecera, apenas mudara do branco para o amarelo, mas estava ali, intacta. A mulher ao contrário da agenda embranquecera cabelos, pele, pensamentos ... A agenda continuava sendo portadora dos mesmos sonhos de quarenta anos atrás; a mulher já não tinha sonhos. A agenda estava pesada, a mulher estava leve.
Olhou para a ausência no sofá, para as paredes vazias de fotos, para o silêncio negro da sala. Dos quarenta anos, restavam agenda e mulher, material e alma, lembranças e saudade.
No dia seguinte, a mulher desceu as escadas ainda mais lentamente. Acariciou a agenda e a depositou novamente no lixo reciclável. Dessa vez não subiu as escadas como sempre fazia. Abriu o portão e foi caminhar suavemente pela rua, enquanto pensava no poema de Cecília Meireles: " O que é preciso é ser como se já não fôssemos, vigiados pelos próprios olhos severos conosco, pois o resto não nos pertence."

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

As duas


Os olhos abriram-se rápidos. Precisava ir ao banheiro. Levantou-se com dificuldade. O corpo inteiro doía. Do quarto ao banheiro parecia haver uma distância interminável. Quando chegou ao lavabo, pode ver seu rosto pálido no espelho. Sentiu as mãos tremerem. Estava muito fraca.
Da janela da cozinha, podia ver as folhas secas no jardim. Estivera ausente de sua casa por três dias e ninguém se importara com as plantas.
Quando abriu a porta da geladeira, um estranho ruído veio do quarto. Arrepiou-se. E agora? Estava sozinha em casa. Não havia almoço no fogão. Precisava comer algo. De repente, o ruído se fez mais forte. Caminhou lentamente de volta ao quarto. Espiou. Estavam lá. Eram duas. Pensou em pedir socorro. Inútil, sua casa era a única construída naquele condomínio novo. O ruído aumentava mais e mais. Elas agora a procuravam. Trancou-se no banheiro.
Bateram à porta:
- Clara? Trouxe seu almoço.
Silêncio. Empurrou a porta vagarosamente. Estava caída no chão. O marido a ergueu. Ela cochichou em seu ouvido:
- Olhe, elas estão ali!
O marido estranhando o comportamento da esposa, olhou para o aposento:
_ Elas?
Clara, então, correu até a cama. As duas se mexiam. Estavam com certeza a sua espera. Num ímpeto, debruçou-se sobre as perninhas da filha recém-nascida. Tão frágeis e magrinhas, pensou, por onde iriam pela vida aquelas perninhas?
Às onze horas, um choro profundo de mãe rompia a quietude daquela manhã de abril.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010


Braços que se desabraçam
tento alcançar o silêncio

1968


Caiam folhas sonolentas
na manhã febril
Era outono de 1968

Um choro emoldurado
gritava pelas janelas
podia-se ver ao longe
Asas partidas de pássaros
Representações de uma realidade marginal

Nos trilhos do trem
As asas pousavam selando com dor
os corpos pesados e cansados
dos passageiros

domingo, 1 de agosto de 2010

Moinhos


Amor ... moinhos de vento
rajadas de sol queimando o corpo
minha pele sua ... sua pele
moinhos movendo doendo morrendo

Estações


Não sonho verões
Outono morreu
Inverno se foi
Primavera ... nascerei

Trechos do Livro do Desassossego - Fernando Pessoa


"Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida."


(...)


"Ouço cair o tempo gota a gota"

(...)


"Qualquer deslocamento das horas usuais traz sempre ao espírito uma novidade fria, um prazer levemente desconfortante. Quem tem o hábito de sair do escritório às seis horas, e por acaso saia às cinco, tem desde logo um feriado mental e uma coisa que parece pena de não saber o que fazer de si."

(...)

"Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos."