quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A partilha


O carro foi se aproximando da casa da fazenda. Era estranho saber que vovô não estaria mais ali, sentado na cadeira, debaixo da varanda, esperando por mim.
Na minha infância, durante as férias de janeiro, era sagrado que todos os netos passassem uma semana com os avós.
Subi as escadas, passo a passo. Cada degrau uma lembrança. Aquele cheiro bom de mato, de terra pura, de fruta no pomar, de boi no pasto, de fogão à lenha. Quanta saudade!
A sala estava cheia. Vinte netos, dez bisnetos, tios, tias. Fui a última a chegar.
_ Venha querida, agora podemos começar - disse minha mãe.
No chão espalhavam-se todos os pertences de vovô: discos, fotos, livros, roupas, relógios, quadros, radinhos de pilha e uma caixinha velha de madeira.
Que confusão! Mais de cinquenta italianos em uma única sala. Mão para lá, mão para cá, falatório. Esbarrões, uma verdadeira feira.
Quando todos se acalmaram, vi ali, no meio do tapete, a caixinha velha. Ninguém a quisera.
Era bem nítido em minhas lembranças, o valor daquele objeto, ou melhor, não do objeto em si, mas do que dentro dele havia: selos. Muitos selos, de vários tamanhos e cores, de diversos lugares. Os selos representavam histórias. Cada carta recebida e que trazia notícias boas, tinha o selo retirado e guardado. Quando a noite caía, meu avô pegava a caixa e revivia emoções. Sempre chorava. Não era um colecionador de selos, mas da simbologia que carregavam e zelava por eles, como se essa fosse uma forma de eternizar os seus momentos de felicidade.
Essa mania de vovô durou sessenta anos. Nos dois últimos anos de sua vida, acordava e dormia com a caixinha de selos. Vovó só não se separou porque era ridículo demais acreditar que estava sendo traída com uma caixa de bobagens, segundo ela.
Passei grande parte da vida com medo de selos. Tinha verdadeira aversão a eles. Odiava receber cartas com receio de acabar também presa aqueles pedacinhos de papel e suas lembranças.
Depois daquele alvoroço, enquanto todos dormiam, fui à varanda. Como num ritual em que se jogam as cinzas do morto ao mar, lancei ao vento os selos. Pronto! Agora a partilha acabara de vez. Estavam libertas todas as histórias, e que descansassem em paz.

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