quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O trabalhador arquivo ontem e hoje - Reeditado


Foi na adolescência (década de 80), que li pela primeira vez o conto "O arquivo", de Victor Giudice. Lembro-me, ainda, da sensação de estranheza que o texto me causou.
Falava de um trabalhador que ao fim de um ano de serviços prestados obtinha uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. Com o passar do tempo seu salário era cada vez mais reduzido, sua condição de vida piorava. Teve que mudar para locais mais pobres e longe do trabalho, até ficar ao relento. Quase não comia, não dormia e mal se vestia.
Quando completou quarenta anos de serviço, a chefia o convocou. Havia sido premiado: não teria mais salário nem férias.
O trabalhador, cansado, pois havia atingido o tempo total de trabalho,tentou requerer a sua aposentadoria, mas o patrão lhe dissera para aguardar, porque ele já era um desassalariado, teria que pagar uma taxa inicial para permanecer no quadro de funcionários.
Fora toda essa barbárie, o que mais me chocou no texto, na época, foi o fato de ao final de sua vida, o trabalhador se transformar em um arquivo: " As formas se desumanizaram, planas, compactas. Nos lados havia duas arestas. Tornou-se cinzento ... um arquivo."
Naquele tempo, acostumada a ver meu pai, metalúrgico em São Bernardo do Campo, a lutar por seus direitos e gritar por dignidade nas grandes greves do ABC, muitas vezes ao lado de Lula (quem diria) , achava maluquice aquela cena, coisa capaz de acontecer somente na Literatura. Mas, hoje, passados bem mais de vinte anos, vejo como isso é bem possível. Nós trabalhadores honestos e responsáveis como o João do conto, estamos nos transformando lentamente em arquivos, quando a cada dia que nasce, vemos nossos direitos sendo reduzidos: o direito ao descanso, o direito a um aumento justo, o direito ao atendimento médico de qualidade, o direito à Educação e outros tantos direitos soterrados.
Estamos nos transformando em arquivos a cada plenária no congresso, quando criam mais e mais leis para reduzir nossas chances de ter um padrão adequado de vida.
Em pleno século XXI, milhões de arquivos perambulam pelas ruas. O que difere o trabalhador arquivo de agora e o personagem criado por Giudice é que aquele foi transformado em metal, mais resistente; e o de agora, mais moderno, é feito à base de papel reciclável, que é para ser manuseado e reutilizado muitas vezes, assim, quando não prestar mais, apenas um sopro será capaz de eliminá-lo.
E no século XXII, que estranho objeto seremos?

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